Na semana passada, em São Francisco, na Califórnia (EUA), participei da conferência “Converge” da Circle Internet Financial, que estava repleta de estrelas. Lá, fiquei impressionado com a grande variedade de projetos que trabalham com a stablecoin USD Coin ( USDC).
A lista de participantes incluía convidados como a Ripio, empresa de pagamentos baseada na América Latina que está vendo uma demanda crescente por transferências com USDC no Brasil e na Argentina, e o Recur, provedor de serviços Web 3.0 que aceita apenas a stablecoin em seus vários metaversos, incluindo o “Star Trek Continuum”.
Parece que o USDC, a segunda stablecoin mais negociada em valor de mercado, está desenvolvendo seu próprio “ecossistema”, uma palavra (talvez usada em demasia) que os defensores do código aberto aplicam em redes de desenvolvedores e provedores de terceiros.
Abaixo, conto o que aprendi aqui na conferência para os legisladores dos EUA que estão planejando a forma digital que o dólar deve assumir. Mas antes, vamos primeiro refletir sobre a ideia do projeto USDC. Não é um conceito óbvio, embora suas implicações são profundas.
Comparemos a Converge com a NEARCon, a conferência anual patrocinada pela Near Foundation que participei há duas semanas em Lisboa, em Portugal. É mais fácil entender esse evento como uma “conferência do ecossistema”. Como outras reuniões desse tipo – a Devcon do Ethereum (ETH) é um excelente exemplo, – a Near usa esses encontros para reunir e energizar a vasta comunidade de desenvolvedores e empresas que criam dapps e outros serviços com smart contracts (contratos inteligentes) executados em seu protocolo.
O USDC não é um protocolo de contrato inteligente para dapps. É principalmente um veículo de pagamento, concebido pela maioria das pessoas como uma “moeda”. É uma expressão tokenizada de valor baseado em um dólar (mais fluído do que em um dólar não digital), que pode ser trocado peer-to-peer (ponto a ponto) em blockchains públicas. (O lançamento da Circle na quarta-feira (28) de um novo protocolo de transferência de cadeia cruzada aproxima o USDC de uma definição mais comum de um protocolo cripto, mas não é por isso que todos esses provedores terceirizados vinculados ao USDC participaram do evento).
No entanto, a meu ver, o USDC está desenvolvendo a mãe de todos os protocolos.
Dinheiro como protocolo
Quando Jeff John Roberts, da Fortune, pediu para o CEO da Circle, Jeremy Allaire, em uma entrevista coletiva na quarta-feira (28), esclarecer o que ele quis dizer ao falar que o USDC é uma “plataforma”, sua resposta em duas partes foi esclarecedora.
A primeira parte concentrou-se na interface de programação de aplicativos (API, na sigla em inglês) do USDC, que fornece aos programadores externos acesso aberto a ferramentas de codificação e dados para usar em seus programas. Isso foi consistente com a ideia clássica de uma plataforma/protocolo de tecnologia que incentiva o desenvolvimento de software externo a aumentar o valor geral.
Mas então Allaire voltou-se para o próprio dólar, descrevendo-o como o valor “padrão” estabelecido para a internet. Sua ideia era que a moeda dos EUA, agora expressa em forma “programável” via USDC e outras stablecoins baseadas em dólar, pudesse se tornar sua própria “plataforma extensível”.
Isso me fez pensar sobre a noção mais ampla de “protocolo” além de seu significado específico de software. Em sua essência, os protocolos são conjuntos acordados de regras pelas quais as partes independentes se envolvem. Eles fornecem uma função de padronização vital para o comércio e a sociedade em geral. Eles são parte integrante da civilização e vêm em muitas formas.
Uma linguagem, por exemplo, é um protocolo. Quando duas pessoas conversam usando o protocolo inglês, elas concordam tacitamente que os objetos em que estão sentadas são “chairs”. Mas se eles mudarem para o português, os assentos são “cadeiras”. Nenhuma palavra é certa ou errada em um sentido natural. Elas são compostas. Mas ao concordar em usar a regra, possibilitamos a comunicação. (Não é coincidência que o código do software possa ser escrito em diferentes “linguagens”).
O dinheiro também é um conceito inventado. É uma referência acordada para medir e referenciar um benchmark de valor. Nesse sentido, é um protocolo.
O dólar é o protocolo de troca de valor mais bem-sucedido da história. E se, como diz Allaire, esse padrão puder florescer em um ambiente de código aberto e público, ele promoverá uma explosão de novas ideias e aplicativos, juntamente com a criação maciça de valor, assim como fez a internet, que é uma plataforma extensível global e pública.
Aviso aos legisladores
Acho que esta tese está correta. E é uma que os legisladores dos EUA deveriam considerar seriamente. Ao pesar propostas concorrentes para regular stablecoins, eles devem reconhecer que, se deixarem o desenvolvimento de dólares digitais para o governo, por meio de uma moeda digital do banco central (CBDC), não chegarão nem perto da inovação e da criação de valor que uma comunidade global open source pode gerar. Com os EUA preocupados em perder uma corrida armamentista digital para uma aliança entre China e Rússia, o incentivo a esse ecossistema pode ser positivo.
Mas algo que é do interesse do governo dos EUA não é necessariamente do interesse do mundo.
Por um lado, como o ativista e autor Brett Scott me lembrou durante um bate-papo na NEARCon, a expansão global de dólares equivale a uma perda de soberania em outros lugares. As populações locais estrangeiras perderão o controle sobre sua oferta monetária, com as condições de crédito determinadas por Washington. Pode-se argumentar que uma internet financeira “hiperdolarizada” é uma forma de colonialismo digital dos EUA.
E, embora eu concorde com a análise de Allaire sobre alinhar os interesses dos EUA com as últimas inovações financeiras, devemos ter cuidado para não colocar muito poder nas mãos de algumas corporações privadas como a Circle. Cometemos esse erro uma vez com o Web 2.0.
A Circle faz um bom jogo em seus esforços de lobby, incentivando a competição aberta de stablecoins, e acho que podemos aceitar isso, pelo menos por enquanto, de boa-fé. Mas como vimos gigantes tais quais Google, Amazon, Facebook e outras dobrarem seus modelos de negócios extrativistas e abusarem da privacidade, apesar de um crescente clamor público, qualquer empresa de stablecoin bem-sucedida também enfrentará uma pressão implacável de maximização de lucro dos acionistas para criar posições anticompetitivas.
Acho que esses dois problemas podem ser resolvidos se os legisladores dos EUA aplicarem uma abordagem internacional e princípios de promoção da concorrência. Existe um modelo, por exemplo, que permita que comunidades fora dos EUA – sejam elas nacionais ou locais – forjem novas expressões de valor tokenizadas e tenham controle sobre seus recursos e futuros econômicos? (Estou particularmente interessado em moedas digitais apoiadas pela natureza, como as criadas pela Single Earth para incentivar a proteção da biodiversidade e a criação de sumidouros de carbono nos países em desenvolvimento.)
Além disso, para realmente liberar o poder de inovação da plataforma de dólares digitais, devemos afrouxar as restrições de acesso criadas pelas regras do “Conheça Seu Cliente” (KYC, na sigla em inglês) e antilavagem de dinheiro, bem como reduzir os poderes de vigilância de transações dos bancos dos EUA. Crie um acesso mais livre a dólares entre os financeiramente excluídos do mundo e coisas incríveis acontecerão.
A visão da Circle contém a possibilidade de um sistema financeiro global radicalmente redefinido, superando os abusos de um sistema estabelecido que está cada vez mais quebrado. Mas essa visão deve ser enquadrada dentro de princípios ponderados, inclusivos e humanos.
* Michael J. Casey é diretor de comunicações do CoinDesk.
FONTE: INFOMONEY